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A vida num zás

8 de junho de 2015

Ele nasceu numa noite fresca, no alvorecer da primavera. Havia flores na praça e a família estava em festa. Demorou para aprender a andar, falou rápido, teve cachumba, catapora e piolho logo na primeira semana de aula. Quebrou o dedão do pé jogando bola e o braço esquerdo ao cair da laranjeira do quintal do vizinho. Teve um cão chamado Noé. E um avô que assava salsichas improvisando uma churrasqueirinha em tijolos empilhados.

Esse avô tinha habilidades mágicas. Fazia desaparecer moedas na palma da mão para retira-las logo em seguida detrás da orelha, além de saber fazer pipa e carrinho de rolimã. Um dia, disseram a ele que esse avô viajou. E que a viagem era muito longa e demorada. Mas quando Noé morreu atropelado em frente de casa, deduziu que há um tipo de viagem para a Terra da Meia-Verdade. Então sentiu uma saudade doída do avô e muita raiva dos outros adultos ao descobrir que toda meia-verdade carrega o peso de uma meia-mentira.

Aos 15 anos teve um estirão. Magro, comprido e de cabelo desgrenhado, grudaram-lhe o apelido de Coqueiro. As espinhas cobriram-lhe a face. Usou aparelho e apaixonou-se por Roberta, que nunca soube da existência dele. Aos 18, passou no vestibular para Desenho Industrial. Virou anarquista. Depois dark, sem saber direito o que significava isso além de vestir-se de preto da cabeça aos pés. Quando conheceu Julinha, passou a vestir jeans e camiseta. Começou a namorar, perdeu a virgindade e levou um pé na bunda. Achou que ia morrer de tristeza. Mas encontrou Luísa, de quem não se desgrudou até o fim da faculdade,

Empregou-se numa multinacional. Especializou-se em desenhar parafusos. Não quaisquer parafusos, nanoparafusos que eram parte de nanoengrenagens de nanomáquinas que ninguém sabia direito para que serviam. Ganhou um dinheirão. Casou. Não com Luísa, com Simone, com quem teve um filho e se separou para viver com Clarissa, sua colega de prancheta. Fez longa carreira desenhando parafusos. A empresa dizia que o futuro era desenhar parafusos cada vez menores. Mas isso era outra meia-verdade. Houve um momento em que os chips substituíram as nanomáquinas e desenhistas de nanoparafusos não eram mais necessários.

Hoje ele tem cabelos brancos e seu próprio negócio, um trailer de hamburger. E um neto encantador. Decidiu reservar parte do dia para o guri, a quem diverte com performances de ilusionismo, fazendo aparecer moedas detrás da orelha. Já fez um carrinho de rolimã para ele. E muitas pipas. Deu um cachorro de presente ao neto, e disse que um dia o bichinho vai morrer. Mas que – embora cheia de meias-verdades – a vida é boa, e precisa ser desfrutada, porque passa num zás!