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A doença do espanto

11 de agosto de 2015

A mãe, apressada, talvez atrasada para algum compromisso, puxava o filho pela mão, o que o obrigava a dar pequenos saltos na calçada para acompanha-la par e passo. Mas eis que o garoto empaca subitamente, fazendo a mãe estancar num solavanco. “O que foi?”, ela grita, irritada, ao que o menino responde apontando o dedo indicador para um inseto pousado numa placa de trânsito. “Aff! É só um gafanhoto. Vamos!”, ralhou a mulher, arrastando o guri que permanecia de olhos postos no inseto enquanto era levado embora a contragosto.

Não era só um gafanhoto. Ao menos não era um gafanhoto qualquer. O dorso era verde. As patas amarelas tinham listras pretas como se ele vestisse meias de inverno. E a cabeça vermelha, incrustada no corpo, reluzia feito um rubi. Avistá-lo num canto da placa, em meio ao bulício urbano dos passantes, é uma proeza concedida apenas a quem tem olhos de espanto. Não era um gafanhoto qualquer, era o objeto de espanto de uma criança.

Aristóteles dizia que o começo de todas as ciências é o espanto das coisas serem o que são. A filosofia nasce do espanto, e da indagação que ele provoca. Não sou cientista nem filósofo, mas Deus me livre perder meus olhos de espanto. Porque, para mim, ele não leva apenas ao conhecimento, mas ao prazer das descobertas que dão graça à vida. Acontecimentos banais, episódios ordinários e objetos pueris vistos com olhos de espanto produzem o fogo do novo.

A propósito disso, Rubem Alves contou que uma mulher apareceu em seu consultório de psicanálise dizendo achar que estava ficando louca. Embora cozinhar sempre fosse um dos grandes prazeres da analisada, ela argumentou ao analista que passara a vida inteira cortando cebolas sem que tal tarefa lhe despertasse qualquer emoção. Um dia, ao trespassar mais uma com a faca, partindo-a em duas, levou um susto: percebeu que nunca tinha reparado em como era uma cebola por dentro, com seus anéis ajustados, com a luz refletindo neles.

Em vez de diagnosticar o surto de loucura, Rubem Alves foi à prateleira e catou Odes Elementares, de Pablo Neruda. Abriu na Ode à cebola: “Cebola/ luminosa redoma/pétala a pétala/ cresceu a tua formosura/ escamas de cristal te acrescentaram/ e no segredo da terra escura/ se foi arredondando o teu ventre de orvalho”. Então Rubem Alves disse à mulher que aquela perturbação ocular que a acometera era comum entre os poetas. Também quero viver doente disso. Que a benigna doença do espanto nos permita sempre ver a vida para além de sua aparência banal.